Voto
PROCESSO: 00058.032050/2020-42
RELATOR: LUIZ RICARDO DE SOUZA NASCIMENTO
A Lei n.º 11.182, de 27 de setembro de 2005, conferiu competência à Agência Nacional de Aviação Civil – Anac para regular e fiscalizar os serviços aéreos, a formação e o treinamento de pessoal especializado, a habilitação de tripulantes, e as demais atividades de aviação civil, bem como promover a implementação das normas e recomendações internacionais de aviação civil e expedir normas a serem cumpridas pelas prestadoras de serviços aéreos (art. 8º, incisos IV e XXX).
Segundo o mesmo diploma legal, compete à Diretoria exercer o poder normativo da Agência (art. 11, inciso V), corroborado pelo Decreto nº 5.731, de 20 de março de 2006, que aprova o regulamento da Anac e estabelece que à Diretoria compete, em regime de colegiado, analisar, discutir e decidir, em instância administrativa final, as matérias de competência da Agência, bem como exercer o poder normativo da Anac (art. 24, inciso VIII). Dessa forma, resta evidente a competência do Colegiado para analisar a presente proposta normativa.
De partida, relembro que na 16ª Reunião da Diretoria Colegiada, em 17 de outubro de 2023, apresentei Voto-vista sugerindo o encaminhamento das propostas de alterações normativas à Consulta Pública, por entender que, em função do esgotamento dos estudos pela área técnica, as alterações regulatórias, embora complexas, estariam aptas a serem escrutinadas pelos interessados, sobretudo em função da importância e dos potenciais efeitos da temática para o setor. Na ocasião, ressaltei ainda que, a despeito de a proposta se apoiar em benchmarking internacional, especialmente inspirada nas regras emitidas pela Federal Aviation Administration (FAA), não deveríamos meramente internalizar o modelo americano sem considerar as peculiaridades e a realidade heterogênea do ambiente operacional, social, demográfico e econômico do nosso país.
Assim, rememoro que, impelida pelo Programa Voo Simples, a proposta visa escalonar a carga regulatória às especificidades de cada contexto operacional, passando a adequar as exigências normativas ao porte do regulado e à complexidade da operação aérea. Com isso, pretende-se reduzir burocracias e eliminar excessos que possam prejudicar o desenvolvimento do setor.
A modernização regulatória é um importante mecanismo de propulsão do desenvolvimento nacional e de promoção do bem-estar social, porém, a depender da envergadura da mudança, os seus efeitos precisam ser bem compreendidos. Nesse sentido, retomo algumas preocupações que expus em debates anteriores em relação ao tema e que, a meu ver, precisam ser consideradas em uma transição normativa.
Uma delas diz respeito ao potencial de regulados aptos e interessados a se certificarem como operadores de transporte aéreo público e seus efeitos de curto prazo no setor, na Agência e no alcance do rationale regulatório em proposição. Ainda são incertos os impactos da Reforma Tributária sobre o mercado de aviação que opera sob a édige do RBAC nº 135, considerando que as aeronaves utilizadas por tais operadores estariam isentas de pagamento do imposto sobre a propriedade de veículos automotores aéreos, conforme Emenda Constitucional nº 132/2023. O crescimento expressivo de operadores sob a RBAC nº 135, previsto como possível consequência da mudança nas normas tributárias e da facilitação aqui em discussão, pode representar um desafio para a Agência, exigindo a adaptação dos recursos humanos e dos procedimentos internos da Anac para lidar com as novas demandas. Isso se deve, principalmente, à necessidade de monitoramento e, principalmente, de fiscalização, considerando sua natureza de transporte público de passageiros e a regulação aplicável.
Outra preocupação é com relação aos incentivos e impactos aos operadores já certificados ou em processo final de certificação. Mais abaixo explico o motivo que, na minha visão, as alterações como propostas, podem acarretar em resultados colaterais indesejáveis e de retorno custoso para todo setor.
Inobstante, considero ainda relevante destacar a ausência de um conjunto robusto de dados e informações detalhadas e específicas de segurança operacional - safety para o grupo dos potenciais novos operadores de transporte aéreo, tendo em vista a regulação aplicável à eles atualmente.
Assim, de partida, entendo que a segmentação concomitante dos operadores sob RBAC nº 135 em quatro grupos, conforme proposto pela área técnica, poderá significar uma alteração de grande complexidade ao setor, com novos entrantes de diversos portes, ao mesmo tempo em que poderia ocorrer uma reconfiguração dos operadores já certificados. Tal dinâmica exigiria que a Agência dispusesse de mecanismos robustos de vigilância para monitorar intensivamente os operadores dos novos grupos, visando a adoção das ações tempestivas eventualmente necessárias, tendo em vista toda a remodelagem regulatória. Contudo, levando em conta as incertezas de uma eventual reorganização do setor com a implementação da norma sugerida, não se constatou nos autos que tanto a Agência quanto os regulados estejam prontos para tal alteração de direção.
Nesse diapasão, entendo ser importante a adoção inicial de uma abordagem de maior prudência que permita que a Agência e novos operadores evoluam gradualmente nas estratificações propostas. Como qualquer avanço regulatório, essa evolução deve ser embasada em dados que demonstrem benefícios para a sociedade com a expansão da oferta de serviços de transporte no país, ao mesmo tempo que se mostra segura.
Como mencionado, reconheço a importância da lógica regulatória na proposta de quatro grupos apresentada pela área técnica e atualmente implementada pela FAA. No entanto, considero que ela pode resultar em efeitos secundários indesejados se os grupos forem implementados de forma simultânea, sem uma gradação. Nos Estados Unidos, o principal benchmarking, esse mercado já existe há décadas. Isso significa que os grupos estão estabelecidos e as mudanças dos operadores entre esses grupos são algo natural e resultante das especificidades de cada empresa - existe uma maturidade normativa e de mercado. É crucial que este Colegiado esteja atento às repercussões que a implementação imediata dos 4 grupos pode ter no setor a curto prazo, comprometendo os ganhos previstos pela proposta em debate.
Por exemplo, verifica-se que atualmente mais de 70% dos atuais operadores certificados que operam sob o RBAC n° 135 possui frota de até 5 (cinco) aeronaves, e seriam, em tese, elegíveis a um reenquadramento sob os novos grupos B, C ou D propostos pela SPO no documento SEI 10259110. Embora a intenção do projeto normativo seja a de apresentar um caminho a ser percorrido para os novos operadores, desde um nível de entrada de maior simplicidade e menor fardo regulatório até o nível de operador padrão, é razoável assumir que grande parte dos operadores já certificados demandará um reenquadramento sob tais grupos, tendo em vista evidentes diminuições de custos. Essas empresas seriam, a partir da proposta, incentivadas a uma redução do seu atual nível de aderência com os dispositivos dos RBAC n° 119 e 135, representando, a meu ver, um retrocesso. É importante enfatizar que não é esse o objetivo da implementação da regulação escalonada por perfis.
Ressalto que para os grupos B, C e D estão propostas flexibilizações quanto ao cumprimento de requisitos relativos ao sistema de manuais, ao Sistema de Gerenciamento da Segurança Operacional (SGSO) e ao Programa de Treinamento Operacional (PTO). Julgo que tais requisitos, em geral, possuem relevante papel como proteção regulatória em especial em um contexto de riscos operacionais que são típicos da operação aérea. Alguns desses requisitos, inclusive, contribuíram para moldar uma cultura de segurança nas empresas ao longo dos anos (vide, como exemplo, o sistema SGSO). Em um operador novo, de pequeno porte, cuja cultura de segurança será formada ao longo do seu funcionamento e operação, é lógico que tais exigências sejam incorporadas conforme o seu crescimento se intensifica. No entanto, a cultura de segurança já consolidada nos operadores atuais, esta deve ser mantida e aprimorada, nunca relativizada. Isto não significa que, em algum momento elas não possam ser reenquadradas conforme suas peculiaridades, contudo, antes dessa etapa, é necessário que a regulação esteja estabilizada e se demonstre ser eficiente e adequada ao cenário brasileiro.
Ademais, os operadores classificados nos grupos B, C e D não seriam obrigados a fornecer a estrutura completa do pessoal administrativo exigida pela seção 119.69 do RBAC no 119. Levando em conta que atualmente existem muitos profissionais nessas posições em vários operadores, como diretores de operação e manutenção, pilotos-chefe e diretores de segurança operacional, e que essas funções contribuem e fortalecem o ambiente de promoção da cultura de segurança operacional, é necessário admitir que uma diminuição abrupta na utilização desses profissionais poderia gerar um ambiente de instabilidade que poderia ter impactos não só no âmbito laboral, mas também na segurança operacional.
Assim, embora reconheça os meritórios esforços da área técnica na criação de um modelo de proporcionalidade regulatória, entendo ser mais adequado avançar em modelo ligeiramente diverso. Nesse sentido, proponho a este Colegiado a adoção inicial de apenas dois grupos, a saber:
Operador Padrão, corresponde ao grupo A da proposta da SPO (vide documento SEI 10259110);
Operador Simples, corresponde ao grupo C da proposta da área técnica (SEI 10259110), com adaptações detalhadas nos itens 2.15 a 2.17 deste Voto.
A adoção de apenas dois grupos – em contraste com a proposta de quatro grupos da área técnica – tem como objetivo limitar o escopo de alteração proposto ao setor em um primeiro momento, diminuindo a complexidade da proposta, ao mesmo tempo em que possibilita a criação de um nível de entrada com certificação simplificada e custo operacional reduzido para operadores de pequeno porte.
A escolha do grupo C da proposta da SPO (grupo intermediário) mostra-se conveniente pois, embora possua frota limitada a uma aeronave e pequena estrutura de pessoal de administração e de voo, o modelo proposto confere razoáveis possibilidades operacionais permitindo, por exemplo, a utilização da aeronave em regras de voo por instrumento (Instrument Flight Rules - IFR), o que é positivo sobretudo em termos de segurança operacional. A meu ver, representa a categoria mais adequada dentre as três propostas pela SPO (B, C e D) para uma primeira estratificação do segmento de operadores sob RBAC nº 135, combinando porte limitado, simplicidade operacional e atratividade a novos entrantes. Além disso, um eventual reenquadramento dos atuais operadores certificados sob o grupo Operador Simples aqui proposto não seria expressivo e, tão pouco crível, sobretudo porque, a partir de uma segunda aeronave em sua frota ele retornaria ao staus quo, qual seja de Operador Padrão.
No entanto, considero apropriado fazer ajustes ao grupo de Operador Simples (grupo C) definido pela SPO. Acredito que há espaço para até dois pilotos em comando (pilot in command - PIC), mantendo os três pilotos segundos em comando (second in command - SIC) que estavam previstos na proposta inicial. É crucial entender que a presença de apenas um piloto em comando restringirá a utilização da aeronave da empresa aos limites de tempo máximo de jornada e voo do profissional, de acordo com as disposições da Lei no. 13.475/2017 e do Regulamento Brasileiro da Aviação Civil nº 117. A presença de um piloto em comando adicional não trará uma complexidade significativa para a administração dos treinamentos da empresa, mas sim possibilitará uma utilização mais eficaz da aeronave do operador.
Ademais, considero importante solicitar ao regulado que deseja se enquadrar no grupo Operador Simples que implemente, em prazo adequado a ser estabelecido pela área técnica, o Diário de Bordo em formato eletrônico (eDB), como forma de atender ao requisito 91.203(a)(4) do RBAC nº 91. Essa estratégia proporcionará à Agência acesso a um recurso informatizado para um acompanhamento mais eficaz das operações executadas.
Por fim, além da proposição dos dois grupos acima definidos, creio ser essencial que, ao final de 2 (dois) anos após a primeira certificação de operador sob o grupo Operador Simples, a Anac realize uma Análise de Resultado Regulatório (ARR) para avaliar os efeitos da intervenção sobre o ambiente regulado. Julgo importante que a ARR avalie, no mínimo, se a intervenção regulatória proporcionou expansão relevante da oferta de serviços de transporte, sobretudo em regiões mais carentes de atendimento de transporte aéreo (principalmente nas Regiões Norte, Centro-Oeste e Nordeste do país), ao mesmo tempo em que manteve um nível de segurança operacional adequado.
Sob esta ótica, a ARR será um instrumento valioso para determinar se a divisão do setor em apenas dois segmentos foi a estratégia regulatória mais eficiente. Assim, pode-se avaliar a necessidade de uma estratificação mais ampla, conforme a proposta inicial, para um melhor atendimento ao interesse público, ou ainda, se os critérios empregados nos dois grupos aqui sugeridos precisam de melhorias.
Ante o exposto, VOTO FAVORAVELMENTE à aprovação da emenda ao Regulamento Brasileiro da Aviação Civil (RBAC) n° 135 nos termos da Proposta de Ato Normativo SEI n° 10250452, considerando as diretrizes presentes nos itens 2.13, 2.15 a 2.17 do presente Voto a serem observadas pela SPO quando da aprovação da revisão da Instrução Suplementar (IS) n° 119-004.
Ainda, VOTO FAVORAVELMENTE à realização de Análise de Resultado Regulatório (ARR) por esta Agência, nos termos delineados nos itens 2.18 e 2.19 deste Voto.
É como voto.
LUIZ RICARDO DE SOUZA NASCIMENTO
Diretor
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