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Voto

PROCESSO: 00065.000688/2024-59

INTERESSADO: ANDRÉ GOMES DA SILVA

RELATOR: LUIZ RICARDO DE SOUZA NASCIMENTO

 

DA COMPETÊNCIA DA DIRETORIA COLEGIADA

Os incisos X, XXXV e XLIII do art. 8º da Lei nº 11.182/2005 conferem competência à Anac para regular e fiscalizar, entre outros aspectos, os serviços aéreos, a formação e o treinamento de pessoal e a habilitação de tripulantes, reprimir infrações à legislação e aplicar as sanções cabíveis, e decidir, em último grau, sobre as matérias de sua competência.

 

A Resolução nº 381/2016, que trata do Regimento Interno da Anac, estabelece no caput do art. 9º que compete à Diretoria da Agência, em regime de colegiado, analisar, discutir e decidir, em instância administrativa final, as matérias de competência da Anac.

 

Por sua vez, a Resolução nº 472/2018, que dispõe sobre providências administrativas decorrentes do exercício das atividades de fiscalização sob competência da Anac, estabelece no §1º do art. 35, que na aplicação de sanção de suspensão ou cassação pela primeira instância, caso exista recurso, este será encaminhado diretamente à Diretoria para distribuição aleatória.

 

Desta forma, resta clara a competência deste Colegiado para a deliberação da presente matéria.

 

DA ANÁLISE E FUNDAMENTAÇÃO

Conforme exposto no Relatório (SEI 10998458), trata-se de processo administrativo originado da emissão do Auto de Infração nº 0020.I/2024 (SEI 9531182), lavrado em  desfavor do senhor André Gomes da Silva.

 

A Superintendência de Pessoal da Aviação Civil (SPL) lavrou o referido auto de infração em 09/01/2024, ao identificar a realização de lançamentos irregulares pelo senhor André Gomes da Silva em sua Caderneta Individual de Voo (CIV) Digital e a apresentação de declarações de instrução ideologicamente falsas à Agência.

 

O Relatório de Ocorrência (SEI 9531183), elaborado pela gerência de fiscalização da SPL, registra que o interessado teria inserido irregularmente em sua CIV Digital 39 (trinta e nove) voos que totalizaram 44:42 hh:mm horas de voo sem correspondência com diários de bordo ou cuja legitimidade foi negada pelos operadores das aeronaves. Além disso, o autuado teria inserido 54:00 hh:mm horas de voo que encontram discrepância com os dados do Certificado de Verificação de Aeronavegabilidade (CVA) - designado como Declaração de Inspeção Anual de Manutenção (DIAM) à época dos fatos - emitido para a aeronave de marcas PT-JQK, voada pelo interessado. Tal conjunto de horas também foi considerado irregular pela SPL. Portanto, as horas de voo não realizadas pelo autuado e lançadas indevidamente em sua CIV Digital alcançariam um total de 98:42 hh:mm, somando-se os dois conjuntos de horas de voo considerados pela área técnica.

 

Desse quantitativo total de horas, 03:00 hh:mm horas de voo supostamente realizadas no dia 15/07/2015 sob a aeronave de marcas PR-VGG, foram apresentados no âmbito do processo SINTAC 00065.147044/2015-32, referente à solicitação feita pelo interessado para a concessão de licença de piloto privado de avião PPR e habilitação monomotor terrestre MNTE, a qual foi indeferida pela área técnica em 2015. Nesse mesmo processo, foi apresentada declaração de instrução cuja autenticidade foi negada pela Escola Mineira de Formação de Aviadores (EMFA).

 

Além disso, 41:42 hh:mm horas de voo supostamente realizadas entre as datas 25/10/2015 e 17/12/2015 sob as aeronaves de marcas PT-BTN, PT-BXF e PT-NYQ, foram apresentadas no âmbito do processo SINTAC 00065.171309/2015-13, o qual foi deferido pela área técnica em dezembro/2015, resultando na concessão do certificado de código ANAC 201583 ao Sr. André Gomes da Silva, correspondendo à licença de piloto privado de avião PPR com averbação da habilitação MNTE. Neste mesmo processo teria sido apresentada declaração de instrução cuja autenticidade foi negada pela Brasflight Escola de Aviação Civil, suposta emissora do documento. 

 

Na Decisão em Primeira Instância (SEI 9934970) proferida em 04/12/2024, a SPL concluiu pela comprovação da prática infracional, aplicando multa no valor de R$ 16.084,78 (dezesseis mil e oitenta e quatro reais e setenta e oito centavos), cumulada com sanção restritiva de direitos, na forma de cassação de todas as licenças de piloto do interessado e habilitações a elas averbadas.

 

Diante da decisão aplicada pela SPL, o Sr. André Gomes da Silva apresentou, em 17/12/2024, recurso à Diretoria (SEI 10948788).

 

A partir do recurso apresentado, em síntese, o interessado:

requer que seja aplicado efeito suspensivo, suspendendo a exigibilidade de pagamento da multa até a estabilização do julgado. Sustenta que seria patente o prejuízo de difícil reparação do recorrente, pois ao exercer o direito de defesa, o valor da multa continuará sendo atualizado;

argumenta que a sanção de cassação das habilitações deveria ser anulada ou revogada, sob pena de violação do princípio do non bis in idem. Isso porque o recorrente já teria sido penalizado administrativamente no processo nº 00065.008954/2023-19;

sustenta que a Anac já teria exigido que ele excluísse todas as horas de voos que foram consideradas irregulares, e teve seus processos de habilitações declarados nulos, portanto, a decisão proferida no processo nº 00065.008954/2023-19 já teria aplicado a penalidade restritiva de direitos. Pontua que estaria ocorrendo dupla penalização pelo mesmo fato gerador;

argumenta que teria obtido nova habilitação sem usar as horas de voos consideradas irregulares, e que não seria justo e razoável que a atual habilitação do recorrente seja cassada haja vista que teria sido obtida sem aproveitamento dos registros irregulares; e

sustenta que a habilitação que se pretende cassar não mais existe, já que ela foi anulada e a licença que se está cassando foi obtida com horas regulares. Assim, não seria possível cassar uma habilitação que não existe mais. Cassar a habilitação atual violaria o ato jurídico perfeito que foi a habilitação concedida com base em horas realizadas de forma regular.

 

O interessado, ao final, requer que sejam suspensos os encargos legais relativos à cobrança da multa, por não ter sido paga no vencimento, bem como solicita a reforma da Decisão de Primeira Instância com a não aplicação da penalidade de cassação de sua licença.

 

Da existência da infração 

De partida, destaco que esta Diretoria realizou pormenorizada análise do conjunto documental apresentado pela SPL quanto ao lançamento indevido dos dois conjuntos de horas de voo que, somados, resultariam em um total de 98:42 hh:mm horas de voo supostamente lançadas de maneira indevida na CIV Digital do interessado.

 

Quanto ao conjunto de 44:42 hh:mm de voo, constatou-se que, de fato, não possuem lastro nos respectivos diários de bordo das aeronaves envolvidas ou a sua autenticidade foi negada pelas escolas supramencionadas, o que comprova, no meu entender de maneira inequívoca, serem horas indevidamente lançadas na CIV Digital do autuado.

 

Quanto ao conjunto de 54:00 hh:mm horas de voo que estariam discrepantes em relação ao lançamento do CVA da aeronave PT-JQK referente ao período entre 05/05/2016 e 16/05/2017, enfatizo que os dados extraídos do Sistema Decolagem Certa - DCERTA (SEI 10080681), considerando os registros obtidos da fonte MOV, foram confrontados com os dados apresentados nas cópias dos diários de bordo da aeronave PT-JQK apresentadas pelo interessado (SEI 10282091, 10282098 e 10282105).

 

Em tal análise, verificou-se que os registros das movimentações apresentados no DCERTA (MOV) são majoritariamente condizentes com os registros apresentados nos diários de bordo da aeronave PT-JQK para os voos realizados pelo aeronauta André Gomes da Silva no período entre 05/05/2016 e 16/05/2017. Assim, ainda que as cópias dos diários de bordo não tenham sido fornecidas pelo operador da aeronave PT-JQK, como bem assevera a SPL, verificou-se haver razoável confiabilidade em tais registros, uma vez que há extensa correspondência entre os dados dos diários de bordo e aqueles apresentados no DCERTA (MOV). Além disso, verificou-se também serem congruentes os dados do DCERTA comparado com o registrado na CIV Digital do profissional, ainda que diferenças pontuais tenham sido identificadas, o que pode decorrer de imprecisões no sistema DCERTA.

 

É relevante, ainda,  registrar que foi constatado nesta diretoria que o diário de bordo n° 01/PT-JQK/2016 (SEI 10282098) apresenta em sua página 39 um erro na contabilização de horas totais, tendo sido realizada uma redução em 100 (cem) horas no valor de horas totais de célula da aeronave PT-JQK, ao que parece, no dia 10/01/2017. Assim, o CVA da aeronave emitido em 16/05/2017 pela Organização de Manutenção Formaer - cujo registro se encontra na página 11 do diário de bordo n° 01/PT-JQK/2017 (SEI 10282105) - deveria ter considerado que a aeronave possuiria 4.190,1 horas de célula quando da emissão de tal documento, significando que a aeronave teria voado 165,2 horas desde a realização do CVA anterior em 05/05/2016. Portanto, considerando que a aeronave teria voado 165,2 horas entre 05/05/2016 e 16/05/2017, é plausível que o aeronauta tenha realizado 120:06 hh:mm de voo na aeronave PT-JQK no período considerado, o que o teria levado a registrar tal quantitativo em sua CIV Digital. 

 

Considerando o exposto, entendo que o conjunto documental apresentado pela área técnica não comprova, de maneira inequívoca, que o conjunto de 54:00 hh:mm de voo teria sido lançado indevidamente na CIV Digital do interessado, ou seja, sem que ele tenha realizado os voos no período considerado. Por isso, passo a considerar neste Voto tão somente o conjunto de 44:42 hh:mm horas de voo trazidos aos autos pela área técnica e cujo suporte probatório se mostra, a meu ver, irrefutável para a configuração da infração.  

 

Da análise dos argumentos do recurso

Quanto à solicitação de efeito suspensivo relativa à exigibilidade de pagamento da multa, cabe esclarecer que os encargos relativos a juros por atraso, multa de mora e todos os consectários legais previstos no parágrafo único do art. 34 da Resolução n° 472/2018 são devidos apenas após o trânsito em julgado da decisão administrativa, o que ainda não ocorreu, sendo o valor atualizado apenas em termos de correção monetária. Além disso, entendo não estar configurado o prejuízo de difícil reparação sustentado pelo recorrente e, portanto, voto pelo não acolhimento da solicitação de efeito suspensivo.

 

Quanto às demais alegações apresentadas no recurso, elas foram adequadamente enfrentadas e refutadas na análise de admissibilidade realizada pela CJDE/SPL (SEI 10961088), e portanto, entendo não serem necessárias considerações adicionais por parte desta Diretoria quanto à análise de mérito realizada pela instância anterior. 

 

Da  análise de prescrição da ação punitiva

Considerando que o conjunto de 44:42 hh:mm horas de horas de voo lançados indevidamente foi realizado entre julho e dezembro de 2015, faz-se necessário avaliar o caso sob a ótica de eventual prescrição da ação punitiva da Agência no exercício do seu poder de polícia. 

 

Considerando que o interessado apresentou perante a Agência seu compêndio de horas de voo na data de 20/12/2015 para obtenção da licença PPR e habilitação MNTE, e em linha com as diretrizes apresentadas no Despacho SPL 6548224, considerou-se essa data como a de ocorrência do ato infracional.

 

Adotando o prazo prescricional previsto na lei penal, ou seja, 8 (oito) anos, já que se está diante também de crime tipificado como falsidade ideológica, entende-se que a janela temporal para a atuação punitiva da Administração findaria em 20/12/2023.

 

Contudo, tendo em vista que a área técnica instaurou o processo SEI 00065.008954/2023-19 em 12/03/2023 para apuração dos fatos, entendo que o prazo prescricional foi interrompido, em consonância com o previsto no inciso II, do art. 2º da lei 9.873, de 23 de novembro de 1999. 

 

Concluo, portanto, não ter havido prescrição da ação punitiva desta Agência para endereçar o caso em análise.

 

Da aplicabilidade de sanção restritiva de direitos

Conforme consta na Decisão em Primeira Instância, a aplicação da sanção de cassação da licença e habilitação do interessado justifica-se devido à alta gravidade dos fatos, tendo em vista o quantitativo expressivo de horas de voo lançadas de maneira irregular, bem como pelo fato de o interessado ter utilizado tais horas para a obtenção da licença PPR e da habilitação MNTE. A SPL ressalta, ainda, estar caracterizado no presente caso desrespeito ao dever de lealdade e boa-fé, norteador das relações entre o administrado e a Administração. A decisão pela cassação fundamenta-se no art. 299, inciso V, da lei n°  7.565/1986 (CBA), bem como no art. 35, §2º, da Resolução Anac n.º 472/2018.

 

Corroboro o entendimento da área técnica e concordo que o imputado cometeu infração de alta gravidade, atuando de maneira desleal perante esta Agência, fazendo-a crer, equivocadamente, que o profissional possuiria a experiência regulamentar requerida para fazer jus à licença de piloto privado de avião e à habilitação monomotor terrestre, o que não correspondia à realidade. É relevante relembrar que a sistemática de lançamento das horas de voo em CIV Digital assenta-se em ato declaratório do aeronauta, sendo esperado, portanto, que atue de maneira íntegra, honesta e com retidão sob pena de ferir a confiança depositada no profissional.

 

Embora o quantitativo de horas comprovadamente fraudadas tenha sido reduzido a cerca de 45% (quarenta e cinco por cento) das horas inicialmente consideradas pela SPL, tal fato em nada ameniza a conduta do imputado. Ressalto que, conforme evidenciado pela SPL nos autos, o envio de dados fraudulentos foram apresentados no âmbito de dois processos administrativos[1] consecutivos protocolados para a concessão de licença ao interessado. Tal recorrência demonstra o patente desrespeito do profissional ao dever de lealdade e boa-fé para com a Agência, justificando uma atuação firme desta autarquia.  

 

Assim, diante da gravidade do presente caso, manifesto concordância com a decisão de primeira instância que aplicou sanção restritiva de direitos na forma de cassação da licença e habilitação do aeronauta.

 

Da sanção pecuniária

Considerando o quantitativo de horas cujo registro fraudulento foi efetivamente comprovado nos autos, qual seja 44:42 hh:mm horas de voo, faz-se necessário recalcular o valor total da sanção pecuniária a ser aplicada ao interessado.

 

Em linha com a metodologia já utilizada nesta Diretoria para casos similares[2], define-se a quantidade de ocorrências como um terço da quantidade de horas fraudadas (n=h/3, arredondado para cima), tendo-se:

 

Número de horas fraudadas = 44:42 hh:mm = 44,7 horas

Quantidade de ocorrências = 44,7 ÷ 3 = 14,9 → 15 ocorrências (arredondando-se para o próximo número inteiro)

 

 Empregando e fórmula de decaimento exponencial prevista no art. 37-B da Resolução nº 472/2018, considerando o valor da multa no presente caso correspondente à linha de código FDI constante no Anexo I da Resolução nº 472//2018 em seu patamar médio R$ 2.800,00, e considerando  a variável "f" igual a 2 - haja vista ter sido identificada uma circunstância atenuante e nenhuma agravante, como expresso na Decisão SEI 9934970 -, calcula-se a seguir a multa a ser aplicada:

 

Valor total da multa = valor da multa unitária * quantidade de ocorrências1/f

Valor total da multa = 2800 * 151/2 = R$ 10.844,35

 

Portanto, com base no quantitativo de horas corrigido, cabe a aplicação de multa ao interessado no valor total de R$ 10.844,35.

 

Da avaliação das condições da aeronave PT-JQK

Por fim, determino à SPO que avalie a condição de aeronavegabilidade da aeronave PT-JQK junto ao operador, considerando que há fortes indícios de que o valor das horas de célula atualmente registrado no CVA no sistema SACI não condiz com as horas reais voadas pela aeronave. E caso seja confirmada tal discrepância, que atue junto ao operador da aeronave para que faça a correção apropriada, considerando as horas voadas efetivamente registradas nos diários de bordo da aeronave.

 

DO VOTO

Assim sendo, ante a todo o exposto e com base no conteúdo dos autos, VOTOPELO CONHECIMENTO DO RECURSO interposto pelo Sr. André Gomes da Silva e, no mérito, PELA REFORMA DA DECISÃO proferida em primeira instância, para aplicar multa no valor de R$ 10.844,35 (dez mil oitocentos e quarenta e quatro reais e trinta e cinco centavos), mantendo-se a sanção restritiva de direitos na forma de cassação da licença e habilitação do aeronauta.

É como voto.

LUIZ RICARDO DE SOUZA NASCIMENTO

Diretor

____________________________

[1] Processos SINTAC 00065.147044/2015-32 e 00065.171309/2015-13.

[2] Voto DIR-TP SEI 8701642.


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Documento assinado eletronicamente por Luiz Ricardo de Souza Nascimento, Diretor, em 18/02/2025, às 10:49, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 4º, do Decreto nº 10.543, de 13 de novembro de 2020.


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