Voto
PROCESSO: 00058.109538/2024-07
RELATOR: LUIZ RICARDO DE SOUZA NASCIMENTO
Da Competência
A Lei n.º 11.182/2005, em seu artigo 8º, incisos X, XIX e XX, atribui à Anac para, entre outros, regular e fiscalizar os serviços aéreos, regular as autorizações de horários de pouso e decolagem de aeronaves civis, observadas as condicionantes do sistema de controle do espaço aéreo e da infraestrutura aeroportuária disponível, e regular e fiscalizar a infraestrutura aeronáutica e aeroportuária, com exceção das atividades e procedimentos relacionados com o sistema de controle do espaço aéreo e com o sistema de investigação e prevenção de acidentes aeronáuticos.
Em seu artigo 11, a Lei estabelece a competência da ANAC para exercer o poder normativo da Agência.
Ainda, o Regimento Interno atribui às superintendências, de modo geral, a competência para submeter à Diretoria propostas normativas decorrentes de suas respectivas competências.
Conclui-se, portanto, que a matéria em discussão é de competência da Diretoria Colegiada da ANAC, estando o encaminhamento feito pela Superintendência de Acompanhamento de Serviços Aéreos - SAS revestido de amparo legal.
Da fudamentação e análise
Conforme relatado, em 20 de dezembro de 2024, a Concessionária Bloco de Onze Aeroportos do Brasil S.A. - BOAB (Aena), operadora do Aeroporto de São Paulo/Congonhas – Deputado Freitas Nobre, manifestou interesse em assumir a gestão dos slots da aviação geral naquele aeroporto. Atualmente, tal atividade é exercida pelo Departamento de Controle do Espaço Aéreo – DECEA, por meio do Centro de Gerenciamento de Navegação Aérea – CGNA.
Para contextualização, o referido aeroporto, que desde meados de 1981 era administrado pela Infraero, uma empresa pública federal, devido à sua inclusão no Programa Nacional de Desestatização (PND) através do Decreto Presidencial nº 10.635/21 e subsequente leilão público - foi transferido para a gestão privada em junho de 2023. No entanto, em função do elevado nível de ocupação de sua infraestrutura, há mais de uma década a Anac declarou o aeroporto como coordenado e, desde então, o sujeitou à regras e parâmetros específicos.
Sem embargo, o normativo que regulamenta a coordenação de aeroportos e dispõe sobre as regras de alocação e monitoramento do uso da infraestrutura foi atualizado pela Anac em 2022, estando vigentes e aplicáveis ao presente caso, a Resolução n.º 682 e a Decisão n.º 533. Esta última, específica para Congonhas, manteve a determinação ora vigente, qual seja, de que os serviços de transporte aéreo regular e não regular, exceto táxi aéreo, seriam prestados sob as regras de alocação de slots coordenados pela própria Agência e, os demais serviços – classificados como de aviação geral, seriam realizados conforme as determinações do responsável pelo controle do espaço aéreo, sendo que, em ambas situações os operadores estariam sujeitos às providências administrativas previstas pela Resolução nº 682.
Inobstante, a atual operadora do aeroporto manifestou à ANAC a intenção de passar a ser a responsável pela gestão dos slots destinados à aviação geral. O cerne de sua justificativa fundamenta-se em questões de transparência e em critérios utilizados pelo atual gestor em suas tomadas de decisões, que geram ineficiências operacionais e inviabilizam a otimização da infraestrutura. Entre outras, alega que nenhuma comunicação ou informação referente as solicitações de slots de aviação geral, feitas pelos interessados diretamente no sistema SIGMA do DECEA, são repassadas previamente à administração aeroportuária. Ademais, aduz que, por inúmeras vezes houve operações da aviação geral acima do previsto no regramento do próprio órgão, inclusive quando o nível de atrasos no aeroporto encontrava-se além do patamar que permitia autorizar slots de oportunidade. Assim, a situação operacional de Congonhas, que é naturalmente crítica, degradou ao ponto de gerar relevantes impactos em pousos e decolagens da aviação comercial, promovendo congestionamento na área operacional e saturação no terminal de passageiros. Relata ainda que essa situação é recorrente ao longo do ano.
A título de benchmarking, a Aena trouxe como referências internacionais as práticas realizadas nos aeroportos de Genebra, na Suíça, e de Nice, na França. Desse estudo, ela destacou como condutas inspiradoras a utilização de: (i) critérios para a reserva prévia do slot, atrelado ou não ao pagamento de reserva; (ii) critérios para coibir o mau uso de slot; (iii) um modelo operacional que dê transparência para o processo de gestão de slot; e (iv) a utilização de FBOs existentes no aeroporto para a atuar na alocação dos slots e nas operações de solo.
Nesse contexto, com base nos estudos e em dados do monitoramento do uso do aeroporto e, ainda, sob as premissas de buscar minimizar os efeitos da escassez de infraestrutura; de promover o uso eficiente da capacidade; de garantir o acesso à infraestrutura aeroportuária de modo imparcial, transparente e não discriminatório; e de conferir publicidade às atividades da coordenação do aeroporto; a Concessionária solicitou que a gestão dos slots da aviação geral seja transferida para si.
Em vista disso, a Superintendência de Acompanhamento de Serviços Aéreos – SAS[1] analisou o pleito na Nota Técnica nº 6/2024/GTRC/GEAM/SAS e no Despacho SAS (11089725), endossando os problemas gerados pelas operações de aviação geral fora dos horários programados no aeroporto. Em sua análise, a SAS identificou que esses slots têm sido subutilizados, com uma média de 80% de uso e picos que excedem o dobro da capacidade reservada em horários críticos, resultando, portanto, em sobrecarga operacional e comprometendo a eficiência do aeroporto.
Diante da situação problema específica, a área técnica analisou as opções regulatórias possíveis e concluiu que a alternativa que melhor poderia endereçar a questão seria a transferência da alocação de slots da aviação geral para o Operador Aeroportuário, aproximando-se, em certa medida, do modelo praticado em outros aeroportos brasileiros. Na oportunidade, destacou como aspecto positivo o ganho de sinergia resultante do interesse da concessionária privada em proporcionar uma alocação eficiente de slots, que, ao tempo que contribuiria para o aprimoramento do uso da capacidade de pista, pátio e terminal, proporcionaria ganhos operacionais para todos os usuários, retornando em eventuais resultados financeiros para a própria Concessionária. Além disso, a análise técnica vislumbrou que tal medida poderia proporcionar, sincronicamente, uma maior flexibilidade operacional e um acompanhamento mais efetivo pela ANAC, aproximando, dentro do plausível, o aeroporto de Congonhas às práticas regulatórias vigentes em outros aeroportos coordenados pela ANAC, senão veja:
“(...) a administração aeroportuária do Aeroporto de Congonhas assumiria a tarefa de alocação de slots da aviação geral e gestão junto aos operadores aéreos da aviação geral quanto à operacionalização dos slots alocados, mantendo a regulação e a possibilidade de fiscalização pela ANAC. Portanto, caso se verifique má gestão por parte do operador aeroportuário ou comportamento por parte dos operadores aéreos que estejam restringindo o acesso ao aeroporto ou comprometendo a utilização eficiente da capacidade aeroportuária declarada, a ANAC poderia intervir no processo. Essa abordagem criaria uma solução híbrida, com delegação parcial da atividade, promovendo a eficiência na alocação de slots enquanto assegura que os princípios de imparcialidade, transparência e não discriminação sejam observados, mantendo um alinhamento ao modelo regulatório vigente”.
Por outro lado, a mencionada Nota Técnica ressaltou possível conflito de interesses no tratamento de operadores aéreos que utilizam a infraestrutura, o qual poderia ser mitigado por contornos e diretrizes regulatórias claras. Além disso, repisou o entendimento de que a atividade de alocação de slots em si não pode gerar cobranças aos operadores aéreos. Vejamos:
“Atividade não onerosa: como a administração aeroportuária é uma entidade privada, é essencial que a atividade de alocação de slots seja realizada sem custos adicionais para os operadores aéreos, garantindo que o acesso à infraestrutura permaneça livre de onerosidade, conforme os princípios regulatórios aplicáveis. Nesse sentido, não há que se falar em qualquer cobrança realizada pelo operador aeroportuário quanto à atividade desempenhada no processo de coordenação e alocação de slots para a aviação geral. No entanto, o que se apresenta aqui está relacionado apenas à questão diretamente relacionada à atividade de alocação dos slots e não à operacionalização dos voos, podendo haver, a depender do caso, algum aumento de custo para aumentar o nível de segurança e a qualidade dos serviços prestados.” (grifei)
Por fim, a SAS concluiu que as principais ineficiências identificadas, quais sejam, a subutilização de slots alocados e a concentração de operações em horários específicos, poderiam ser atenuadas via aprimoramento da gestão dos slots e controle mais rigoroso dessas atividades, sendo, portanto, o remédio administrativo mais recomendado a transferência de responsabilidades pelo processo de coordenação e alocação de slots da aviação geral ao operador aeroportuário. Este, ainda segundo a área técnica, definiria os critérios e regras, desde que atendidas as diretrizes da coordenação de aeroportos, em conformidade com o disposto na Resolução nº 682, podendo a ANAC interferir na atividade, caso identificasse condição contrária ao arcabouço legal e regulatório e ao objetivo de maior eficiência.
Para concretização disso tudo, a SAS recomendou a alteração Decisão nº 533/2022[2] de forma a possibilitar a transferência da responsabilidade pelo processo de coordenação e alocação de slots da aviação geral para o operador aeroportuário, podendo se utilizar do sistema de alocação de slots da Anac ou de sistema próprio do aeroporto, desde que seja concedido acesso irrestrito à Agência para poder realizar o devido acompanhamento. Consigna ainda a necessidade de se implementar condições de contorno importantes para a segurança da transição ou adaptação da alocação de slots para a aviação geral no aeroporto em questão.
O DECEA[3], por sua vez, informou que tem investido no sistema SIGMA objetivando assegurar maior confiabilidade, robustez e imparcialidade no processo de alocação de slots. Afirma que o sistema proporciona análise aprofundada referente à equalização entre demanda e capacidade, garantindo isonomia e transparência. Adiciona, ainda, que o sistema não é utilizado somente em Congonhas, mas também na coordenação de slots eventuais, como no caso de eventos específicos. Além dos investimentos realizados e previstos para o mencionado sistema, o DECEA apresentou preocupação em relação à metodologia e à capacidade do novo sistema de interagir com os sistemas de controle de tráfego aéreo, de forma a permitir análise do cenário de forma dinâmica, como a situação requer. Adicionalmente, afirmou, sobre a proposta apresentada pela Concessionária, que “a alocação de slots apenas aos FBO traz dúvidas quanto à transparência do processo e acessibilidade dos usuários de forma igualitária, preceitos que tem norteado a alocação dos slots por parte do DECEA”.
Nesse ínterim, a Aena, de forma complementar, apresentou ponderações à manifestação do DECEA e trouxe contribuições apresentadas pela Associação de Pilotos e Proprietários de Aeronaves – AOPA e pelas empresas VOAR Aviação, Líder Aviação, Premier e TAM Aviação Executiva (estas três últimas consolidadas em um único documento)[4]. Na ocasião, a Concessionária se manifestou no sentido de que, caso seja feita a transferência da gestão dos slots pleiteada, “o detalhamento e documentação final das regras de distribuição e monitoramento de slots, bem como o calendário de transição, serão propostos (...) e submetidos a avaliação e aprovação da ANAC, em momento posterior”. Acrescenta ainda, que levará em consideração as contribuições da consulta realizada, respondendo às contribuições e atendendo aos requisitos de visibilidade do DECEA, sempre em alinhamento com o Regulador.
De maneira a colaborar com a discussão, a Superintendência de Regulação Econômica de Aeroportos – SRA[5] destacou a existência de valor nos slots e de incentivos para ganhos privados, tanto no modelo atual quanto na proposta apresentada, haja vista a ausência de normas e instrumentos regulatórios suficientemente claros e adequados. Considera, ainda, necessária uma proposta de regras concreta sobre a qual deve ser analisada o alinhamento com o disposto no inciso I do art. 4º, da Resolução nº 682, de 7 de junho de 2022. Isto é, deve-se verificar se a alocação dos slots com base em critérios que envolvam direitos de aferição de rendas à concessionária ou aos FBOs pode ser considerada imparcial, transparente e não discriminatória.
De posse de todas essas informações e considerando a alta relevância da matéria e o interesse público geral envolvido, enderecei o assunto à Procuradoria Federal Especializada junto à Anac – PFE-Anac[6], que concluiu ser necessário um aprimoramento na instrução processual, indicando a necessidade da participação de interessados por meio de consulta pública, bem como de Análise de Impacto Regulatório – AIR ou estudo técnico similar para fundamentar a proposta[7].
A par de tudo isso, avalio que a SAS trouxe, em sua nota técnica, informações substanciais e válidas que denotam que o modelo atual precisa ser reavaliado, de maneira que as ineficiências sejam reduzidas. Para tanto, estou convicto e faço coro à Superintendência de Acompanhamento de Serviços Aéreos, no sentido de que se faz necessária a alteração da Decisão n.º 533, na medida em que permitirá perseguir caminhos para a otimização da gestão operacional e para o aprimoramento do uso da infraestrutura do aeroporto, como forma de atendimento ao interesse público geral, alcançando melhorias tanto para os usuários da aviação geral, como para os passageiros e operadores aéreos da aviação comercial.
Considero também que, entre as opções analisadas pela unidade técnica, restou fartamente examinada e fundamentada a alternativa por delegar à Concessionária, sob supervisão da Agência. Por outro lado, restou evidente que há múltiplas formas de se operacionalizar a gestão dos slots de aviação geral, uma vez delegada tal competência ao operador do aeroporto. Assim, a depender do modelo de governança adotado, poderão emergir efeitos diversos dos inicialmente almejados, sendo essencial que a solução implementada assegure critérios de eficiência, imparcialidade, transparência e não discriminação na alocação dos referidos slots, dentre outros.
Igualmente, não descarto a possibilidade de que, a depender das regras a serem praticada no novo modelo, os envolvidos nas operações aeroportuárias passem a incorrer em custos atualmente inexistentes ou irrelevantes, sujeitando-se a um aumento nos valores envolvidos nas cobranças pelos serviços ali prestados. Outros reflexos, que, também dependem da alternativa a ser implementada, ainda não foram devidamente analisados, de maneira que, a título de exemplo, cito a carta apresentada pela Concessionária em sua segunda manifestação nos autos[8], a qual reuniu manifestações de diferentes atores sobre o tema, revelando algumas convergências, mas também divergências relevantes em pontos sensíveis, que devem ser considerados e devidamente tratados.
Sob esse aspecto específico, me coaduno com a manifestação do órgão jurídico da ANAC e com a SRA, no sentido de que a ausência de uma proposta completa, com regras claras e concretas inviabiliza uma avaliação plena e abrangente. Todavia, entendo que os elementos e fundamentos da área técnica constantes dos autos já permitem concluir que seguir com a transferência da gestão dos slots de aviação geral para a Concessionária é a opção que melhor endereça as ineficiências naquela infraestrutura escassa. Contudo, essa perspectiva não elimina a necessidade de prudência em relação aos pontos levantados pela PFE-ANAC, os quais são de indiscutível relevância e deverão ser adequadamente enfrentados em momento oportuno.
Dessa forma, ao tempo que julgo pertinente seguir com a transferência da gestão dos slots para a Concessionária, entendo ser imperativo o retorno dos autos à Superintendência de Serviços Aéreos, a fim de que seja suplantada pela Concessionária e avaliada pela setorial competente da Anac em um estudo técnico que contemple, além da análise das regras a serem propostas pela Concessionária, os possíveis impactos que a implementação do feito poderá produzir - uma proposta completa, objetiva e estruturada das regras que se pretende aplicar para disciplinar a matéria, bem como um cronograma para a implementação e, caso necessário, um plano de transição junto ao DECEA.
Entendo ainda deveras salutar que essas regras sejam construídas pela Concessionária com a participação das partes interessadas — ou por meio de processo colaborativo, indo além da consulta — e alinhadas aos objetivos regulatórios, em especial às premissas estabelecidas no contrato de concessão, na regulação econômica de aeroportos e na Resolução nº 682/2022, com a supervisão da área técnica.
do Voto
Diante do exposto, VOTO pelo deferimento parcial do pleito apresentado pela Concessionária Bloco de Onze Aeroportos do Brasil S.A. – BOAB, nos termos da proposta de ato normativo 11528284, de modo a transferir a responsabilidade pelo processo de coordenação e alocação de slots da aviação geral para o operador aeroportuário.
VOTO também pelo encaminhamento do processo à Superintendência de Acompanhamento de Serviços Aéreos – SAS para complementação da instrução processual, nos moldes expressos neste voto, com posterior retorno a este Colegiado, unicamente, para aprovação das regras propostas, com base nas diretrizes aqui estabelecidas.
Por fim, determino à Superintendência de Acompanhamento de Serviços aéreos que envide esforços e execute as ações necessárias a fim de que a implementação da coordenação de slots para a aviação geral pelo operador do aeroporto ocorra até o início da Temporada Inverno 2025 (W25).
É como voto.
LUIZ RICARDO DE SOUZA NASCIMENTO
Diretor
[1] Nota Técnica nº 6/2024/GTRC/GEAM/SAS (SEI 10973898)
[2] Proposta de Ato Normativo SEI 10975523
[3] Ofício nº 1/2025/DIR-LRI-ANAC – SEI 11090336
[4] Carta nº 18113BOAB20250228 (SEI 11236994) e anexos (SEI 11236995, 11236996, 11236998, 11237000, 11237001 e 11237002)
[5] Despacho SRA SEI 11254051
[6] Despacho DIR-LRI SEI 11277677
[7] Nota Jurídica nº 4/2025/CMF/PFEANAC/PGF/AGU e seguintes despachos de aprovação (SEI 11443808, 11443814, 11443824 e 11443827)
[8] Carta Nº 18113BOAB20250228 – SEI 11236994
| Documento assinado eletronicamente por Luiz Ricardo de Souza Nascimento, Diretor, em 13/05/2025, às 16:09, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 4º, do Decreto nº 10.543, de 13 de novembro de 2020. |
| A autenticidade deste documento pode ser conferida no site https://sei.anac.gov.br/sei/autenticidade, informando o código verificador 11525217 e o código CRC BB52F6CC. |
SEI nº 11525217 |