Timbre

Voto

PROCESSO: 00065.038008/2024-70

INTERESSADO: JACKSON ANDRE PICCININI

RELATOR: ADRIANO PINTO DE MIRANDA

 

da competência

A Lei nº 11.182, de 27/09/2005, em seu art. 8º, incisos X, XXXV e XLIII, estabelece a competência da Anac para regular e fiscalizar as atividades da aviação civil, bem como reprimir infrações à legislação pertinente.

A Resolução nº 381, de 14/06/2016, que aprova o Regimento Interno da Agência, estabelece no caput do art. 9º que compete à Diretoria da Agência, em regime de colegiado, decidir, em última instância administrativa, as matérias de competência da Anac.

Já a Resolução nº 472, de 06/06/2018, que disciplina as providências administrativas decorrentes do exercício das atividades de fiscalização no âmbito da competência da Anac, dispõe no §1º do art. 35 que, havendo recurso contra a aplicação de penalidade de suspensão ou cassação pela primeira instância, este deverá ser encaminhado diretamente à Diretoria.

Diante disso, resta evidenciado que a matéria sob análise é de alçada da Diretoria Colegiada, estando os encaminhamentos realizados pela Assessoria de Julgamento de Autos em Segunda Instância (Asjin) revestidos de amparo legal. Estão, assim, atendidos os requisitos formais para a apreciação do presente recurso.

 

DA análise e fundamentação

Dos autos, observa-se que o aeronauta JACKSON ANDRE PICCININI foi regularmente notificado da emissão do Auto de Infração 2049.I/2024 em seu desfavor, ocasião em que lhe foi concedido prazo para apresentação de defesa, a qual foi protocolada tempestivamente e considerada na decisão em primeira instância administrativa. Posteriormente, o autuado foi notificado do teor da decisão administrativa em primeira instância e do prazo para apresentação de recurso, que está em apreciação na presente deliberação. Constatam-se, portanto, o respeito ao contraditório e à ampla defesa, bem como a regularidade formal do processo administrativo sancionador (PAS).

No que se refere à conduta imputada ao aeronauta, com base nas informações constantes nos autos, teria ele inserido na sua Caderneta Individual de Voo Digital (CIV Digital) setenta registros indevidos de voos com as aeronaves PP-RTX e PP-RTO, totalizando 134 horas e 42 minutos de voo que não encontram correspondência nos respectivos diários de bordo. Tais horas de voo declaradas inveridicamente teriam ainda sido empregadas para fins de comprovação de requisito de experiência de voo no âmbito do processo SINTAC nº 00065.039314/2018-85, voltado à obtenção da habilitação de Piloto Agrícola de Avião (PAGA), deferida em 10/08/2018.

De fato, constam na CIV Digital do aeronauta (SEI! 10529550) 51 registros de voos supostamente realizados entre os dias 02/01 e 14/11/2017, totalizando 103 horas 42 minutos de voo com a aeronave PP-RTO, que não possuem correspondência com os registros do respectivo diário de bordo (SEI! 10529586, pág. 66 a 68; SEI! 11211518, pág. 5 a 7).

Também constam 19 registros de voos supostamente realizados entre os dias 03/01 e 02/11/2017, totalizando 31 horas de voo com a aeronave PP-RTX, também sem respaldo nos registros do respectivo diário de bordo (SEI! 10529586; pág. 20 a 50; SEI! 11211526, pág. 23 a 53).

Restou configurada, portanto, infração ao inciso V do art. 299 da Lei nº 7565, de 19/12/1986 (Código Brasileiro de Aeronáutica).

Além disso, os anexos SEI! 10768994 e 10769784 confirmam que essas horas de voo declaradas inveridicamente com as aeronaves PP-RTO e PP-RTX foram utilizadas pelo recorrente para a obtenção da habilitação PAGA em 2018.

Em sua peça recursal, apresentada em 20/02/2025 (SEI! 11193080), o recorrente alega vício nas provas trazidas aos autos, o que prejudicaria a comprovação da conduta fraudulenta; cerceamento de defesa; ausência de fundamentação, motivação, razoabilidade e proporcionalidade atinentes à pena de cassação aplicada; bem como ausência de intenção de fraude na CIV.

Inicialmente, não há que se falar em vício probatório, uma vez que as cópias das páginas dos diários de bordo PP-RTX e PP-RTO foram todas fornecidas pelo operador dessas aeronaves, que é o responsável pela guarda e pela disponibilização das informações contidas nesses documentos, conforme estabelece a Resolução nº 457, de 20/12/2017. As cópias das folhas do diário de bordo PP-RTX, abrangendo os voos realizados de 03/01 a 02/11/2017, considerado o período dos registros de voos efetuados na CIV do aeronauta, foram solicitadas pela Anac por meio do Ofício nº 204/2018/GCEP-DE/GCEP/SPO-ANAC, tendo o operador atendido o pedido desta Agência por meio do processo 00067.001834/2018-03. Já as cópias do diário de bordo da aeronave PP-RTO, abrangendo os voos realizados desde 02/01 e 14/11/2017, foram solicitadas pela Agência por meio do Ofício nº 203/2018/GCEP-DE/GCEP/SPO-ANAC, tendo o operador atendido o pedido por meio do processo 00067.001832/2018-14, conforme se vê nos documentos SEI! 11211526 e 11211518.

Necessário observar que o operador encaminhou somente as páginas solicitadas e necessárias para a análise, relacionadas ao período dos voos das aeronaves PP-RTO e PP-RTX realizados entre 02/01 e 14/11/2017. Observa-se, ainda, que tais páginas são sequenciais e abrangem todas as datas do referido intervalo, havendo continuidade dos registros, sem qualquer lacuna. Até onde há certa ilegibilidade na parte superior da página 49 do diário PP-RTX, conforme apontado pelo recorrente em seu documento recursal e conforme se observa à pág. 46 do anexo (SEI! 10529586), não se identifica, na respectiva tabela, qualquer voo atribuído ao aeronauta JACKSON ANDRE PICCININI, Canac 144071. Portanto, não há que se falar em qualquer prejuízo na comprovação da conduta fraudulenta.

Prossegue o recorrente alegando nulidade da decisão por cerceamento de defesa e ausência de fundamentação adequada, pois esta Agência não teria oportunizado de forma clara e inequívoca o contraditório e a ampla defesa no que concerne à possibilidade de aplicação da penalidade de suspensão ou cassação das licenças e ou habilitações pela Primeira Instância, bem como não teria havido qualquer aprofundamento na análise da proporcionalidade da sanção restritiva de direitos aplicada.

Sobre o alegado cerceamento de defesa, cumpre informar que esta Agência notificou o aeronauta da presente autuação e oportunizou prazo para apresentação de manifestação, por meio do Ofício nº 3328/2024/ASJIN-ANAC (SEI! 10535024). Observa-se que a intimação foi cumprida em 11/10/2024, por meio de "consulta direta", conforme atesta a Certidão SEI! 10674056, tendo o interessado comparecido ao processo para solicitar o desconto de 50% no valor da multa (SEI! 10707655), o que implica, inclusive, no reconhecimento da prática da infração, conforme previsão do art. 28, parágrafo segundo, da Resolução nº 472/2018.

Diante da apresentação do requerimento de desconto no valor da multa, a Primeira Instância Julgadora proferiu decisão (SEI! 10766770) com relação à penalidade pecuniária já reconhecida pelo autuado, concedendo o desconto pretendido. Entretanto, considerando a natureza da infração, aquela Instância verificou que haveria a possibilidade de acumulação da multa aplicada com uma penalidade restritiva de direitos, por meio de uma decisão complementar. Assim, em respeito à ampla defesa e ao contraditório, foi reaberto prazo de 20 dias para defesa complementar em relação à possível aplicação de penalidade restritiva de direitos (SEI! 10886837).

A intimação do aeronauta foi cumprida em 03/12/2024 por meio, mais uma vez, de "Consulta Direta", conforme atesta a Certidão SEI! 10887056, entretanto não houve a apresentação de defesa complementar. Ato contínuo, durante a análise complementar SEI! 11121821 foi constatada a gravidade da infração e os respectivos desdobramentos, tendo sido decidido, cumulativamente à multa já imposta, pela aplicação da penalidade de cassação das licenças e habilitações do interessado, com efeitos após o trânsito em julgado administrativo.

Observa-se que o interessado foi intimado sobre a decisão complementar (SEI! 11144406), ocasião em que também foi oportunizada a apresentação de recurso administrativo, que se encontra ora em análise. Constata-se, assim, que, em nenhum momento, o interessado esteve desguarnecido de informações sobre as sanções passíveis de aplicação, tanto que, mesmo com a adoção de rito sumário, foi determinada nova notificação sobre a possibilidade de aplicação de sanção restritiva de direitos, sendo o presente recurso administrativo resultado e prova de que a abertura ao interessado para nova manifestação se fazia necessária em respeito ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa.

Também não merece prosperar a tese de falta de aprofundamento ou desproporcionalidade para aplicação da penalidade de cassação. Conforme se observa nas análises realizadas pela Primeira Instância (SEI! 10766770 e 11121821), além das evidências trazidas pela fiscalização, restou demonstrado que as condutas infracionais tratadas aqui são gravíssimas. O recorrente se valeu de fraude em horas de experiência de voo necessárias para cumprir requisitos previstos no RBAC nº 61 e, com esse fornecimento de informações inverídicas à Anac – de voos que jamais existiram – obteve, de forma ilegal e indevida, a habilitação de piloto PAGA. Observe-se que foi fraudado um número considerável de horas de voo (134 horas e 42 minutos), o que demonstrou a falta de boa-fé e idoneidade profissional. A própria análise em Primeira Instância (SEI! 11121821) replicou algumas tabelas presentes no processo de apuração 00065.025877/2023-53 e que corroboram a alta gravidade das condutas infracionais tratadas aqui, sendo necessária, sem dúvida, a aplicação da penalidade de cassação.

A Decisão SEI! 11121821 ainda arrolou vários normativos que preveem a possibilidade da cassação nesses casos gravíssimos de infrações, entre eles o art. 164 do CBA, a seção 61.4 do RBAC nº 61 e os arts. 9º e 35 da Resolução nº 472/2018. Ainda sobre esse ponto, mister informar que a Diretoria desta Anac já possui entendimento firmado no sentido da aplicação da penalidade de cassação em vários julgados envolvendo casos semelhantes, relacionados a infrações gravíssimas decorrentes de fraude de horas de voo em CIV e obtenção de licença/habilitação com a utilização dessas horas fraudadas.

Por fim, o recorrente apresenta uma última tese de que não teria havido indício ou prova de dolo para fraudar o sistema da Agência, mas sim um conjunto de circunstâncias que não teriam sido devidamente esclarecidas.

A esse respeito, entende-se que o processo administrativo sancionador se presume legítimo, cumprindo ao interessado provar em contrário, conforme prevê o art. 36 da Lei nº 9784, de 29/01/1999, que regula o processo no âmbito da Administração Pública Federal. Assim, ante a ausência de qualquer esclarecimento ou prova em sentido contrário, cujo ônus compete ao interessado, deve prevalecer a presunção de veracidade e legalidade dos atos praticados no presente PAS. Além disso, entende-se que este processo não visa julgar falseamento da verdade ou fraude, e sim a responsabilidade pela apresentação de dados ou informações nos sistemas da Anac.

Conforme consta no RBAC 61, a CIV Digital é um banco de dados informatizado utilizado para verificação da experiência, comprovação e certificação de horas de voo do piloto. Assim, tais registros, feitos de forma individual e independentes, são aceitos pela ANAC para demonstrar o cumprimento de requisitos necessários para concessão de licenças e habilitações, obrigatórios para o exercício da profissão de piloto, o que demonstra a importância da veracidade dessa informação. Rememora-se aqui que a inserção de dados na CIV Digital é feita no sistema SACI por meio de login e senha individual de responsabilidade exclusiva do aeronauta. Ou seja, a responsabilidade pelos registros das horas de voo é intransferível, assim como a responsabilidade pela guarda e sigilo da sua senha de acesso ao sistema. 

Acrescenta-se que, conforme o Relatório de Ocorrência da fiscalização, o interessado apresentou as informações de voos de sua CIV à Agência de forma a solicitar e obter a concessão da habilitação de piloto agrícola, tendo sido apurado, posteriormente, que os referidos voos não estavam registrados nos diários de bordos das aeronaves envolvidas. Portanto, restam claras as responsabilidades do recorrente tanto pelo fornecimento de informações adulteradas em relação aos registros em sua CIV Digital quanto no pedido de concessão da habilitação PAGA, obtida indevidamente e elevando, portanto, o risco à segurança de terceiros e ao sistema de aviação civil como um todo.

Importante destacar que o quantitativo de horas de voo de avião lançadas irregularmente (134 horas e 42 minutos), corresponde a mais do que um terço das horas exigidas para obtenção da habilitação PAGA, ou seja, a formação do piloto se baseou significativamente em voos não realizados. Além disso, o Recorrente, desde 2012 é detentor de licença de piloto privado de avião. Logo, quando do cometimento das irregularidades aqui apuradas, o profissional já possuía experiência relevante no meio da aviação civil, devendo ter melhor compreensão acerca da importância do processo de formação e treinamento de um piloto.

Destaco também que a ANAC tem se empenhado continuamente na promoção da regulação responsiva, a qual demanda confiabilidade na relação entre regulado e regulador. Assim, ao apresentar informações falsas, em especial no contexto de um processo de concessão de habilitações de piloto, o Recorrente violou a boa-fé e a lealdade para com a ANAC, ferindo princípios que são indispensáveis no modelo de regulação que nos propomos a praticar.

Portanto, ao passo que não prosperam as alegações apresentadas pelo recorrente, não cabe reforma da decisão de primeira instância de forma a afastar ou alterar as penalidades aplicadas. Restou demonstrado que as condutas praticadas pelo aeronauta são graves o suficiente para também ensejar a aplicação da sanção de cassação, uma vez que, além de ter registrado em sua CIV Digital relevantes horas de voo, sem tê-las de fato realizado, também as utilizou para obtenção de habilitação de piloto, com o claro objetivo de ludibriar o processo de certificação de pessoal da Anac. Tal tipo de conduta, além de quebrar a confiança entre regulado e regulador, descumpriu fundamentos básicos da formação de um piloto, gerando, portanto, um risco inadmissível à aviação civil como um todo.

 

DA conclusão

Ante o exposto, VOTO pelo conhecimento do recurso administrativo apresentado (SEI! 11193080) e, no mérito, por NEGAR-LHE PROVIMENTO, mantendo-se, na íntegra, a decisão em primeira instância (SEI! 11121821), que aplicou, cumulativamente à multa já imposta, a sanção restritiva de direitos, na forma de cassação de todas as licenças de piloto do interessado e habilitações a elas averbadas.

Encaminhem-se os autos à Asjin para as providências cabíveis.

É como voto.

 

ADRIANO PINTO DE MIRANDA

Diretor Substituto


logotipo

Documento assinado eletronicamente por Adriano Pinto de Miranda, Diretor, Substituto, em 07/04/2025, às 18:42, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 4º, do Decreto nº 10.543, de 13 de novembro de 2020.


QRCode Assinatura

A autenticidade deste documento pode ser conferida no site https://sei.anac.gov.br/sei/autenticidade, informando o código verificador 11297777 e o código CRC F54D8692.




  SEI nº 11297777