Voto
PROCESSO: 00065.020924/2025-34
RELATOR: TIAGO SOUSA PEREIRA
DA COMPETÊNCIA
Os incisos X, XXXV e XLIII do art. 8º da Lei nº 11.182/2005 conferem à Agência Nacional de Aviação Civil – ANAC competência para regular e fiscalizar os serviços aéreos, a formação e o treinamento de pessoal, a habilitação de tripulantes, bem como reprimir infrações à legislação aeronáutica e aplicar as sanções cabíveis, decidindo em última instância administrativa as matérias de sua alçada. Em seu artigo 11, inciso VIII, o referido diploma legal atribui à Diretoria a competência para apreciar, em grau de recurso, as penalidades impostas pela ANAC.
O Regimento Interno da ANAC, aprovado pela Resolução nº 381/2016, em seu art. 9º, inciso XXVIII, atribui à Diretoria da ANAC, em regime de colegiado, analisar, discutir e decidir, em instância administrativa final, as matérias de competência da Agência, bem como julgar, em segunda instância administrativa, os recursos interpostos às sanções de suspensão ou cassação, com ou sem cumulação de sanção pecuniária, aplicadas em primeira instância administrativa.
Adicionalmente, a Resolução nº 472/2018, em seu art. 46, estabelece a competência da Diretoria para apreciar, em última instância administrativa, o recurso administrativo no âmbito de processos administrativos sancionadores que resultarem em sanções de suspensão, de cassação ou multa acima de R$ 100.000,00 (cem mil reais), cuja admissibilidade tenha sido aferida pela autoridade competente para julgamento em instância anterior.
Nesse sentido, resta evidente a competência da Diretoria Colegiada da Agência para analisar e julgar o presente recurso administrativo.
DA ANÁLISE E FUNDAMENTAÇÃO
Da leitura dos autos, verifica-se que o recorrente foi devidamente notificado da lavratura do Auto de Infração e apresentou defesa dentro do prazo legal, tendo-lhe sido assegurados o contraditório e a ampla defesa. A decisão de primeira instância aplicou-lhe, além da multa, a sanção restritiva de direitos consistente na cassação de todas as suas licenças e habilitações. Inconformado, o interessado interpôs recurso a esta Diretoria Colegiada, objeto da presente análise. Desse modo, restou observada a regularidade procedimental do trâmite e o pleno exercício das garantias processuais.
Em síntese, o processo teve origem na apuração de registros inconsistentes na Caderneta Individual de Voo Digital (CIV Digital) do aeronauta Ernani Thomaz, CANAC 253339. Foram identificados 36 lançamentos de voos, totalizando 49 horas e 06 minutos, todos atribuídos à aeronave PR-LRA (papa, romeu, lima, romeu, alfa), relativos ao período de 20/10/2017 a 23/11/2017, sem qualquer correspondência no diário de bordo do avião - documento oficial e primário de registro das operações. Ademais, tais horas foram utilizadas para instruir processo de concessão da licença de Piloto Privado de Avião (PPR), em 28/11/2017, acompanhado de Declaração de Instrução cuja autenticidade foi formalmente negada pela escola de aviação civil indicada pelo piloto como responsável pelo seu treinamento.
Conforme exposto no relatório, o recurso foi interposto pelo interessado contra decisão de primeira instância, proferida pela Superintendência de Pessoal da Aviação Civil (SPL), que determinou a aplicação de multa no valor de R$ 11.544,70 (onze mil, quinhentos e quarenta e quatro reais e setenta centavos), cumulada com a cassação de todas as licenças e habilitações do piloto. Em síntese, o interessado limitou-se a impugnar a penalidade de restrição de direitos, sob o argumento de violação ao princípio do non bis in idem, e a desproporcionalidade da cassação, especialmente em razão da obtenção de nova licença de PPR, em abril de 2025, desta vez de forma regular, após anulação do ato que concedera a licença original. Por outro lado, não questionou a multa, promovendo o pagamento do crédito constituído.
No tocante à alegação de ofensa ao princípio do non bis in idem, não assiste razão ao recorrente. As medidas anteriormente adotadas pela Anac não se confundem com a sanção ora analisada. A nulidade da licença PPR decorreu do exercício do poder de autotutela, previsto nos arts. 53 e 54 da Lei nº 9.784/1999, de natureza estritamente corretiva, destinada a invalidar ato administrativo eivado de vício de legalidade, em razão do não atendimento aos requisitos regulamentares para a sua concessão. O presente processo, por sua vez, possui natureza autônoma e visa à responsabilização do aeronauta pela inserção de informações falsas em sua CIV Digital, instaurado com observância do contraditório e da ampla defesa, nos termos do art. 289 do Código Brasileiro de Aeronáutica. Não há, portanto, dupla penalização pelos mesmos fatos, mas aplicação de instrumentos jurídicos distintos e complementares, cada qual voltado à sua própria finalidade.
No que se refere à contestação de que não caberia cassação sobre a nova licença de Piloto Privado de Avião obtida regularmente, o argumento tampouco merece prosperar. A obtenção de nova licença não elide a gravidade da conduta original. A fraude perpetrada comprometeu de forma direta a idoneidade profissional do aeronauta e a confiança que deve pautar o sistema de aviação civil. No caso concreto, ao se desconsiderarem as horas de voo declaradas — todas sem correspondência no diário de bordo e negadas pelo operador da aeronave —, verifica-se que o piloto não teria atendido a nenhum dos requisitos mínimos previstos na seção 61.81 do RBAC 61 para a concessão da licença PPR. Não se trata, portanto, de irregularidade pontual, mas de ausência total da experiência exigida para a categoria.
Admitir que a realização posterior de cursos regulares pudesse afastar a aplicação de penalidades equivaleria, em termos práticos, a transmitir a mensagem de que fraudar horas de voo seria um risco calculado: se não houver detecção pela Autoridade de Aviação Civil, o benefício se consolidaria; se houver, bastaria regularizar os requisitos em momento posterior. Tal entendimento corroeria a credibilidade do processo de formação e habilitação de pilotos e colocaria em xeque a própria segurança operacional, que constitui dever primário desta Agência proteger.
Embora não se discuta a gravidade da conduta — uma vez que a inserção de horas de voo inexistentes e documentos inautênticos para obtenção de licença compromete a confiança que deve pautar a relação entre administrado e Administração e atinge o cerne da segurança operacional —, os elementos constantes dos autos indicam que a irregularidade está circunscrita ao processo de concessão da licença de Piloto Privado de Avião. Importa ressaltar que o recorrente é titular de licença de Piloto Privado de Helicóptero (PPH), obtida em 15/07/2021, contando atualmente com 58h53 de voo lançadas em sua CIV, sem que, até o momento, tenham sido identificados indícios de fraude.
À luz da regulação responsiva que tem orientado a atuação deste Colegiado, cabe destacar que a resposta do regulador deve ser calibrada conforme a gravidade da infração e o comportamento do regulado. Nesse sentido, a cassação mostra-se medida necessária em relação à licença diretamente vinculada à fraude, ao passo que a suspensão punitiva das demais licenças e habilitações, pelo período de 40 (quarenta) dias, representa resposta proporcional e adequada ao caso concreto. A dosimetria adotada considera a presença de uma circunstância atenuante — ausência de sanções definitivas nos 12 (doze) meses anteriores — e a inexistência de agravantes, em conformidade com art. 37 da Resolução nº 472/2018, que estabelece os parâmetros para quantificação da suspensão punitiva.
Trata-se de medida firme e equilibrada, que preserva a integridade do sistema de aviação civil e reforça à comunidade aeronáutica que a fraude em registros oficiais não será tolerada, mantendo a coerência entre o caráter repressivo e educativo da atuação sancionatória. Destaca-se, ainda, a possibilidade de novas apurações caso surjam elementos que indiquem irregularidades em outras certificações do interessado.
Quanto à sanção pecuniária, mantenho integralmente a decisão de primeira instância que aplicou a multa no valor de R$ 11.544,70 (onze mil, quinhentos e quarenta e quatro reais e setenta centavos), calculada em conformidade com a metodologia prevista no art. 37-B da Resolução nº 472/2018, em razão das condutas infracionais apuradas, observada a dosimetria específica para fraudes em CIV definida por este Colegiado.
DO VOTO
Ante o exposto, VOTO pelo conhecimento do recurso administrativo interposto pelo interessado ERNANI THOMAZ e, no mérito, pelo PROVIMENTO PARCIAL, mantendo ao aeronauta a sanção de multa aplicada pela Decisão de Primeira Instância (SEI 11665716), já adimplida pelo autuado, no valor de R$ 11.544,70 (onze mil, quinhentos e quarenta e quatro reais e setenta centavos) cumulada com a sanção restritiva de direitos, na forma de cassação da licença de Piloto Privado de Avião (PPR) e habilitações a ela averbadas, bem como de suspensão punitiva das demais licenças e habilitações do autuado pelo prazo de 40 (quarenta) dias.
Encaminhem-se os autos à ASJIN e à SPL para a adoção das providências cabíveis.
É como voto.
TIAGO SOUSA PEREIRA
Diretor
| Documento assinado eletronicamente por Tiago Sousa Pereira, Diretor, em 07/10/2025, às 12:45, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 4º, do Decreto nº 10.543, de 13 de novembro de 2020. |
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SEI nº 12109210 |